Resumo
O ensaio propõe pensar as fissuras simbólicas (e psíquicas) do racismo enquanto prática discursiva do pensamento moderno. A (produção da) loucura, portanto, é um signo de deslegitimação imposto e um esquema estratégico de aniquilamento do corpo da mulher negra e de promoção de exclusão. Assim, a construção de novas bases epistemológicas de compreensão social é tanto parte das lutas democráticas atuais quanto uma questão de saúde pública.
Há uma grande dificuldade em pensar o processo traumático do racismo em nossa sociedade, de uma forma em geral, e em mulheres negras, especificamente. Viver sob o signo da raça atrelado ao marcador de gênero causa profundas dores e este também é um processo de morte. Antes da rápida sugestão de que é possível torcer o significado da raça e entender o corpo feminino negro como lugar de potência (a palavrinha da moda), talvez seja fundamental o questionamento do quanto há de violência na pressa utilitária da afirmativa como um destino único. Isto para não incorrer simplesmente no profundo esvaziamento da questão. No que diz respeito ao processo de significação, entender a dor, atravessar a dor e transmutá-la é um processo que se faz em perlaboração, no entendimento de um destino que foi pensado como trágico. A questão é que, para além das negativas quanto à insistência da raça, ao corpo feminino negro não é permitido o processo de travessia. A sociedade está a todo tempo insistindo na manutenção da escassez e na reiteração do(s) trauma(s) como um processo de reificação. É um processo diário e inesgotável, onde manter-se plenamente viva e saudável é um estado que enfrenta inúmeras camadas de impossibilidades; sendo, portanto, a loucura um fantasma anunciado. Resistir a ela é, em si, um ato de rebeldia.
Existem três significados atrelados ao significante “negra” que são fruto dos processos coloniais abissais que marcam não apenas o modus operandi do brasileiro, mas o pensamento comum de uma sociedade que se funda sob o paradigma da “apropriação/violência” (SANTOS, 2007): a mulher negra louca, a mulher negra raivosa e a mulher negra hiper sexualizada ─ tema sobre os quais há uma vasta bibliografia, já debatida por diversos autores . Quanto à loucura enquanto processo social, ela existe no imbricamento dos outros dois (mas não apenas) e todos incididos no paradigma da deriva e da vulnerabilidade. Com insistência somos chamadas de loucas. Com perversidade somos chamadas de raivosas e o conteúdo que produzimos de “agressivo”. A pergunta é: “agressivo para quem, cara pálida?” Nossos corpos são incessantemente sexualizados. Estamos a todo tempo em desamparo. Somos impedidas. Nossa ascensão, quando se dá, é diaspórica ─ o que implica em dizer que ela não é simples. Ela faz adoecer, mata, leva décadas para se dar. Esta mulher é constantemente desqualificada, apagada, sobrevive na (apesar da) injustiça. Portanto, as camadas de violências são muitas: física, mental, epistemológica, cognitiva, social. A negativa deste processo no mínimo revela que a necessidade de elaboração de um processo pedagógico para a branquitude é urgente e fundamental. É necessário à branquitude rejeitar a comodidade e a hipocrisia da negação e fazer ela mesma a sua travessia. O letramento racial e um aprendizado antirracista dizem respeito a interrupção por parte de pessoas brancas da repetição das estruturas de opressão, de morte e de produção de privilégios, calcados justamente na negação do racismo e suas violências.
…