Certa vez, ministrando uma palestra sobre meu livro juvenil, Anele, a menina dos olhos de mundo, comentei que estava finalizando uma dissertação sobre uma escritora brasileira do século XIX muito importante para o país e que a ela era atribuído o pioneirismo brasileiro na escrita de romances. A plateia que me ouvia, formada em grande parte por professoras e professores do ensino básico, ficou surpresa com o fato de nunca terem escutado o nome daquela romancista maranhense, sem contar o susto que tiveram ao saber que ela é pioneira em uma escrita abolicionista. É curioso como nossa reação, de um modo em geral, é maior quando descobrimos que somado ao desconhecimento da existência de alguém, revela-se que a mesma assumiu o pioneirismo em sua atividade intelectual. Observando as expressões, me lembrei das variadas vezes em que em algum evento fui anunciada, ou mesmo indagada, por ser uma autora que começou a desbravar os caminhos da escrita para os gigantes audiovisuais brasileiros ainda lá em 1997. Interessante como me encontrei com a “romancista maranhense” nos lugares suscitados por aqueles olhares.
Sempre há uma espécie de desconforto na descoberta, mas aprendi naquele dia a concordar também que sim, em diferentes épocas e diferentes contextos, somos pioneiras na produção de imaginários a partir das palavras. Eu, que através das palavras, produzo imagens que serão postas em movimento, tendo iniciado a carreira como roteirista pelo humor ─ pelo menos no que diz respeito a questão autoral e à TV ─ reivindiquei também o nosso direito ao riso, como autora, como mulher, e mais, como mulher negra. Sequer existia uma associação de autores-roteiristas nesta época para respaldar qualquer direito ou discussão. Lembro perfeitamente da primeira reunião realizada para a abertura de uma, porque eu estava nela. E isto diz muito a respeito. Duas mulheres. Duas mulheres negras. Duas mulheres negras que ocuparam espaços reservados historicamente a homens brancos. Imagino o que Maria Firmina dos Reis deve ter passado. Consigo supor, em sua época, os passos que precisou dar e o que teve de enfrentar. Olhando para ela, e para as outras mulheres que vieram antes de todas nós, preciso sempre renovar meu compromisso de contar suas histórias, sua história.
Identificando-me com Firmina em seu fazer artístico múltiplo, tenho que lembrar que ela escreveu livros, poemas, contos, compôs músicas, publicou em jornais, e como se não bastasse, foi a primeira professora concursada do Maranhão, em 1847, e aquela que abriu a primeira escola mista do Brasil, em 1880, firmando, portanto, seu lugar na luta por uma educação mais justa e igualitária para todos – o que inclui mulheres, negros, indígenas e pobres. Sua ideia de mundo, seus propósitos e obstinação pautaram toda sua vida e se desdobraram para além dela. Eu, assim como inúmeras outras pessoas, me questionei quando me deparei com seu nome pela primeira vez. Sabemos os motivos que fizeram gerações passarem por toda a formação sem ter contato com sua obra. Desta forma começa o meu diálogo com Firmina. Na certeza de que teria feito diferença lê-la quando mais nova. Na angústia de não aceitar que me impusessem a ignorância sobre a existência de certas escritas. Desde então nos sentamos, eu e Firmina, quase todos os dias para tomar chá de erva-doce com pitanga. Só para trocar uma ideia sincera.
Reforçar o pioneirismo, portanto, não pode ser entendido de outra forma que não seja defender politicamente a existência de uma trajetória a pretexto das tentativas de silenciá-la a todo custo. Quando apontamos o pioneirismo de outra ou somos apontadas, isto diz respeito a reafirmar a certeza que temos uma história, um percurso, uma carreira, ainda que existam insistências e vontades perversas na tentativa de apagá-las. Tenho certeza que não é desejo de ninguém querer ser pioneira em uma atividade. Ela é porque precisa. A pioneira é aquela que precisou fazer o que fez sem referência, sem modelo a ser seguido, sem uma memória prévia, sem afetos, sem suporte, sem caminho. É o gesto mais solitário que pode existir, um salto no abismo.
A importância de falar de Maria Firmina dos Reis, de suas contribuições, de sua força intelectual, de sua fundamental interferência pública – seja pelas abordagens que adota, pelos feitos ou pelos apagamentos que sofreu –, vem ainda da necessidade de nos revermos como país. Da vontade de ler um Brasil que escapa da imagem supostamente ideal que nos foi, e ainda é, apresentada. A ficcionalização de nação que se elabora a partir de uma metanarrativa hegemonicamente construída, exclui. Há, portanto, no cerne questionador e nos interstícios da escrita de Firmina, o que chamo, por me apoiar na complexidade de suas estratégias, um projeto estético-político, um investimento ‘democrático’, uma visão. Há a captura de uma realidade e a transmutação estética dela pela maneira como se conecta com o leitor.
Para exemplificar bem, já no romance Úrsula, publicado em 1859, através da palavra, Firmina narra uma realidade outra, divergente da introduzida pelas elites coloniais no Brasil, e se inscreve no mundo através dela. Se coloca no mundo apontando, pela narrativa, a dinâmica patriarcal; evidenciando a sociedade escravagista alicerçada em um cristianismo apropriado e de viés chulo; expondo, através das personagens que cria, as várias possibilidades de ser negra, e negro, e de ser mulher, e ser mulher e negra. Indo na contramão de uma literatura futura que se concretizaria como projeto de Estado – projeto político de construção do sentido de nação e identidade, de aculturação e domínio, e, desta maneira, relativo às questões sociais no campo dos direitos –, Firmina incorpora à forma do romantismo um discurso corrosivo, e acaba por inocular no bojo da nação, não apenas o europeu e o indígena, mas o afro-brasileiro, além de evidenciar o jugo a que mulheres estão submetidas dentro do sistema patriarcal. As mulheres aparecem como um pilar do sistema opressor que sustenta a sociedade servil. Abordagens únicas até então, complexas.
Por fim, concluo sabendo que essas poucas palavras são incapazes de dar conta de tudo o que está em jogo na literatura da autora, de toda engenhosidade que precisou orquestrar para formular seu discurso. Firmina consegue pela estética promover aberturas, direcionar questionamentos, complexificar questões, reivindicar origens e lugares. Com uma escrita apontada por vezes como menor ou simplória ─ e já conhecemos as estratégias de desqualificação ─ ela produz ecos de um pensamento inquieto e minucioso. Como uma precursora da escrita, destaca-se pela capacidade de tornar a experiência na existência como mulher negra, uma agência de transformação política e inserção no mundo. No viés de um campo de insurgência, a dimensão decolonial do todo de sua obra se apresenta então como uma necessidade. Não acho que Maria Firmina dos Reis seja uma mulher à frente de seu tempo, o que ela era (e é), para mim, é uma mulher consciente de quem era e do que podia, e absolutamente alicerçada em um tempo presente.