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OUTRAS HISTÓRIAS – A Vênus, o olho e a mulata em desmonte ontológico

Resumo

Este ensaio procura refletir sobre a construção de uma esteriotipização do corpo feminino negro a partir, principalmente, da personagem Saartje Baartman, a Vênus Hotentote. A questão contemporânea passa pela diversidade, pela junção daquilo que é universal com a diferença. A diferença é complementar. No cerne de uma reflexão ética o lugar de complemento se dá no entre, não mais na configuração do contexto de Saartje, mas sim em um novo lugar de escuta e de fala, um diálogo que se estabelece através das diferenças.

Escrever é uma maneira de sangrar
(EVARISTO, 2016:109).

Sob o lodo há mais gente que suspira…
(ALIGHIERI, 2003:645)..

Saartje Baartman. Deram-lhe um nome. Deram-lhe outro nome: Sarah. Deramlhe ainda outro nome: Vênus Hotentote1 . Deram-lhe um corpo. Saartje foi levada da África para a Inglaterra em 1810 por um agricultor bôer da região do Cabo (África do Sul), e por um médico. Saartje não era uma mulher, e era uma mulher. Era uma africana, isso que chamam de negra. Parecia uma mulher, mas não era uma mulher. Ela foi exibida como um animal selvagem por cerca de cinco anos em Londres e em Paris. A senhora Saartje era a personificação do outro, outro corpo, um outro outro. Saartje: a
mulher-macaco; a mulher-orangotango; a mulher-nádegas; a mulher-coisa; a mulherobjeto; a objeto-coisa; a macaco-nádegas; a coisa-mulher; a orangotango-coisa

A senhora Saartje Baartman era exposta no palco e precisava caminhar em sua jaula de objeto-coisa acorrentada pelos pés quando era ordenada. Exibida como um espetáculo popular, a mulher-orangotango era um absoluto sucesso junto ao público geral – embora fosse absolutamente abusada. Sendo a representação do primitivo servia aos interesses ávidos de naturalistas e etnólogos. Foi medida, desenhada, vasculhada, observada, descrita e escrita. Saartje Baartman foi escrita. Para Saartje, a partir de Saartje, através de Saartje, fizeram moldes de cera e gesso, modelos, analisaram cada detalhe de sua anatomia, morta e viva. Saartje, a mulher-anomalia. Em nome da Ciência, a pesquisa. Uma ferramenta, um mecanismo para a construção de algo que Michel Foucault (2003), em suas considerações sobre as relações de poder estabelecidas socialmente, iria chamar no futuro de “regime de verdade” (FOUCAULT, 2003:10) – a criação através do poder e do conhecimento. O poder organiza uma anatomia-política do ser humano, desta forma os regimes de verdade são produtos de uma tecnologia do poder que, assim como a disciplinarização dos corpos, articulam uma intenção de verdade e ordenam o discurso de inserção no mundo a partir do corpo. Ademais, Saartje não era uma mulher. Não era senhora. Era uma coisa. Besta-coisa.

A Vênus Hotentote foi constituída como discurso. Era a personificação da diferença, era a representação da alteridade que nela estava patologizada. A Vênus tinha 1,37 metro de altura, mas ninguém pode dizer que foi este o aspecto que mais “interessou” aos senhores da razão, e sim sua esteatopigia: as nádegas protuberantes características da anatomia hotentote e o que chamaram de “avental hotentote”. Tratavase de um alongamento dos lábios vaginais causado pela manipulação da genitália, aspecto considerado bonito por hotentotes e bosquímanos. Ela estava fora das codificações etnocêntricas, foi construída socialmente como o outro. Mais do que isso: ela validava a fantasia-obsessão da instituição desse outro pela marcação da diferença. Estereotipagem, fantasia e fetiche em nome da ciência, encarnados em Saartje Baartman, a Vênus Hotentote.

A Vênus Negra foi observada por meio de oposições binárias, tendo o corpo como significante primordial. Ele era a prova da Verdade, de sua existência primitiva, não civilizada, não igual – habitante de uma zona de vizinhança animal-homem, certamente mais animal que homem. Para a Ciência ela poderia ser, inclusive, o “entre”: o estágio de evolução perdido entre o macaco e o homem. A genitália primitiva de Saartje era também o apetite sexual primitivo de Saartje. Embora não fosse dela o apetite que a encapsulava num lugar de exploração. Inserida no contexto da natureza, encerrada em sua suposta biologia, aprisionada no signo, a africana era a evidência da diferença irremediável entre as raças. Raças construídas socialmente de forma a serem 10.17771/PUCRio.escrita.45150 regimentadas como distintas biologicamente. Para Saartje a biologia determinava o seu lugar e seu papel na história, justificando-se contra ela todo tipo de sadismo.

Na Europa do século XIX, a mulher Saartje, narrada como africana, era exibida como uma curiosidade de feira. Engana-se quem acredita que a história da Vênus Negra se trate exclusivamente de uma narrativa ficcional, a exemplo da película do francotunisiano Abdellatif Kechiche. Saartje é real, sua experiência pode nos ajudar a compreender como os regimes de representação e visibilidade, desde suas origens como estratagemas de poder e dominação, ainda orientam a leitura do que se entende por outro. A sociedade lê e formula tudo aquilo que não identifica como similar como sendo o outro: um não igual, minoritário, desimportante, um exótico. Nas decodificações sobre a alteridade, nas formulações sobre a diferença, nas percepções elaboradas a partir das reivindicações identitárias, se dá um jogo constituído numa relação olhar-mente. Ele ganha músculos na dinâmica das operações simbólicas em seus estágios de inserção e coerção, de manipulação e opressão, de estratégia e violência. De tempos em tempos, e sempre, o manejo da exclusão se reconfigura.

A Vênus Hotentote era uma mulher-gorila: uma fera em forma feminina, usada para ganhos monetários. Ela, a mulher “entre”, a mulher “coisa”, uma “coisa nenhuma”. Sarah, nome pelo qual também ficou conhecida, deu lucro a seu “empresário” não apenas como mulher-objeto/abjeto nas feiras europeias de fenômenos bizarros ou nos zoos humanos, mas também no acordo realizado com o Museé de L´Homme, em Paris, para que realizassem exames físicos. O mesmo museu que viria a ser a morada póstuma de Sarah, um corpo vilipendiado, devastado pela exploração e pelo racismo colonial mesmo depois de morto. Um corpo – ou pedaços de um corpo – lido como objeto passível de ser ridicularizado diante de um outrem, autorizado a ser usado, manipulado, olhado, pulverizado. Tocado, aviltado, mutilado, punido, exterminado. Um corpo a ser consumido. Parece familiar?